sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O monstro embaixo da cama


- Não apague a luz - ele disse.
- Por quê? - ela perguntou, já com o dedo no interruptor.
- Tem um monstro embaixo da cama.

E tinha. Embora as outras pessoas não acreditassem, ou mesmo não o vissem, o monstro estava lá. Todas as noites, desde seus sete anos de idade, o monstro aparecia. Não lhe permitia um sono tranquilo e, muito menos, a escuridão. Por essa razão era celibatário.

Tinha tido inúmeras discussões com ex-amantes incrédulas, embora a grande maioria não tivesse coragem suficiente para olhar embaixo da cama e conferir. Foram discussões intermináveis. Algumas dramáticas, outras nem tanto, mas todas terminavam, invariavelmente, com a separação.

A solução eram os motéis, mais dispendiosos e frios, mas menos assustadores. Isso porque o monstro não o acompanhava a esses lugares. Devia ter lá seu código de ética no qual estava escrito que camas utilizadas exclusivamente para o prazer carnal não mereciam sua aparição. Fazer o quê? Coisas de um monstro pudico. Morava apenas lá, embaixo da sua cama pessoal.

E a dificuldade dos motéis estava nas relações mais longas, aquelas nas quais as mulheres começavam a estranhar esse gosto por quartos impessoais. “Você não leva nosso relacionamento a sério”, diziam, e insistiam em frequentar a sua casa. Algumas vezes, ele até conseguia fazer sexo sem ter que dar explicações sobre a luz, mas quando elas passavam a noite, aí não tinha defesa, o jeito era contar. E ele tinha que contar. Uma mulher que pretendesse dividir sua vida com ele, de forma compromissada, precisava saber a verdade: tinha um monstro embaixo da cama.  

- O quê? – Ela perguntou, puxando o lençol sobre o corpo comprimido.
- Eu sei que parece estranho, mas tem.
- Estranho? É loucura!

Às vezes, uma desculpa:
- Quero poder te ver - ele insiste.
- Tenho vergonha - ela diz, com um sorrisinho de aquiescência.
- Não tem porque se envergonhar – ele a abraça – somo iguais.

Algumas mulheres são mais complicadas:
- Não sei, não me sinto bem com tanta claridade. Parece... parece que estou traindo alguém.
- E está?
- Não, é claro que não. Mas é que desde menina tenho essa sensação de infidelidade quando faço amor no claro. Acho que é um trauma de infância ou coisa parecida.
- É o que o seu analista diz?
- Aquele lá não diz nada. Não sei por que eu pago tão caro a alguém só para me ouvir. Eu deveria ser católica.
- Católica? Como assim?
- Os católicos têm o confessionário, não sabia? É análise gratuita. E o melhor é que você sai aliviado, sem sentimento de culpa.
- Será? Eu tenho minhas dúvidas...
- Do alívio?
- Sim, do alívio. E também da confissão. Eu não acredito que as pessoas contem todos os seus pecados. Além disso, tem a questão tempo. Não é verdade que se formam filas nos confessionários? Então, como é que as pessoas vão ficar à vontade para falarem tudo que o que quiserem?
- Isso é verdade. Mas, de qualquer forma, posso apagar a luz?
- Não. Vamos discutir melhor essa questão. De onde vem esse sentimento de infidelidade?
- Se nem meu analista descobre, como vou saber? Talvez não seja infidelidade, realmente. É só que a claridade me deixa muito exposta, como se cada gesto ou movimento do meu corpo estivesse sendo observado, entende?
- Entendo. É medo?
- Também, mas não só isso. É muito difícil traduzir em palavras esse sentimento. Talvez não exista uma palavra que possua o significado do que eu sinto.
- E meia-luz?
- Como?
- Meia-luz, não serve?
- Prefiro o escuro total.
- Não dá nem pra negociar? Eu tenho um abajur. Veja: – ele diz, já testando sua teoria – eu o ligo, desligo a lâmpada do teto e fica um clima bem interessante...
Ele a abraça e arrasta para o travesseiro, dando-lhe suaves beijos no pescoço.
- Não, não, eu não consigo ficar à vontade. – Ela diz, se desvencilhando dele.
Ele senta-se, visivelmente irritado. Acende um cigarro:
- Desse jeito, não vamos transar nunca!
- Claro que sim. Basta que você apague a luz.
- Está vendo? – ele acende a luz e apaga o abajur – Aí, quem não se sente bem sou eu.
- Você tem medo do escuro?
- Medo? – Ele pergunta, quase se afogando com a fumaça do cigarro – Como assim, medo?
- Só pode ser – ela toma-lhe o cigarro e dá uma tragada – Se você não transa no escuro é porque tem medo.
- Não é medo... eu apenas não gosto do escuro.
- Você dorme com a luz acesa?
- Durmo.
- É fobia?
- Não sei, talvez. Mas o que é agora? Vai me interrogar? E você, não tem fobia de transar no claro?
- Não. No meu caso o trauma é só de transar... Quer saber? Tô de saco cheio disso...
- Perdão – ele a abraça – está bem: eu tenho medo.
- Mas, por quê?
- Sei lá, é esse tipo de coisa que não se explica. É só medo do MONSTRO.
- O que o seu analista diz?
- O analista? É como você diz: melhor ser católico!
Mais uma vez, uma relação sem futuro.


sexta-feira, 20 de julho de 2012

Razão


- Sabe o que é isso? – Ela perguntou, mostrando uma leve mancha entre os dedos indicador e angular.

Ele a observou e nada disse.

- É a velhice – ela respondeu. É a velhice.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Para ler ouvindo

Fim de caso


“Quero chorar porque me dá gana, 
como choram os meninos do banco mais atrás, 
porque não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha, 
mas um pulso ferido que ronda as coisas do outro lado.”


(Poema Duplo do Lago de Éden) Federico Garcia Lorca

Tudo começou quando ela quis jogar fora as minhas camisetas velhas. Eram velhas, eu sei. Largas, gastas, algumas sem colarinho, outras com nódoas marrons na superfície branca, mas eram minhas companheiras nas caminhadas, nas manhãs de sábado no quintal e nas tardes de domingo em frente à TV. Naquele dia percebi que havia algo estranho. Depois de brigarmos efusivamente sobre de quem era a guarda das camisetas velhas e, extasiados, darmos às costas um ao outro, indo eu parar no escritório enquanto ela separava infinitamente as roupas na lavanderia, eu enxerguei que havia algo errado.
“São a suas camisetas, as suas músicas, os seus livros”, ela havia dito, querendo dizer bem mais que isso. “É só um pouco de espaço para minhas coisas que eu peço”, respondi, irritado. Puxei uma camiseta com a efígie do Che Guevara das suas mãos e me arrependi do que falei. Mas tive orgulho e saí dali, indo me refugiar na escrivaninha, fingindo que lia não sei o quê.

O silêncio que se seguiu durou quase uma semana e não terminou como de costume – quando costumávamos nos reconciliar nas dobras do lençol, esfuziantes entre o gozo e os pedidos de desculpas. Quando voltamos a nos falar, foi como se nada tivesse acontecido, nem um “desculpe”, ou “vamos conversar a respeito”. Foi só um vazio, um intervalo indigesto de sete dias entre a última frase e um “bom dia” no café da manhã. Nesse dia, ela estava mais alegre. Não sei porquê e confesso que isso me intrigou. Antes, quando as coisas eram como antigamente, ela sempre me contava do seu dia no trabalho, das novidades e das fofocas dos colegas que eu nem conhecia. Se agora estava alegre é porque algo de bom havia lhe acontecido. Mas eu já não era tão confiável a ponto dela me contar. Senti-me traído e ao mesmo tempo com raiva. Deixei passar.

Dias depois, brigamos por causa da marca do sabão em pó e, no seguinte, por culpa da demora na fila do caixa do banco. Noutro dia, o motivo foi uma frase irônica (ela jura que percebeu ironia) que eu disse no jantar na casa de uns amigos.
No fim, o motivo já não importava. As discussões eram cada vez mais frequentes e longas, mais danosas e mais ofensivas. Os momentos de silêncio entre nós ficaram mais comuns e até o regresso para casa, após um dia de trabalho, parecia ser um sacrifício.  

Quando aconteceu, já não havia mais surpresa, ainda que fosse triste. Eu cheguei da videolocadora, havia alugado “A doce vida” (que ironia) e ela estava sentada na mesa da cozinha. Uma mecha de seu cabelo, preso de forma displicente por um elástico, caía sob o rosto. Ela tinha a cabeça um pouco reclinada, como a admirar o conteúdo da xícara de café sobre a mesa, ao lado do cinzeiro. Na mão, um cigarro pela metade. Ela o levou até os lábios e fumou mais uma vez, antes de olhar-me nos olhos.

-          Precisamos conversar – disse.
Eu entendi, mas tentei despistar, tirando uma xícara do armário e me servindo também de café da cafeteira.
-          Quando eu era mais jovem e namorava, essa era uma frase que sempre me assustava.
Ela me encarou, expressão séria, como a se irritar com a minha espirituosidade:
-          Não sei se assusta, mas é verdade.
Eu sentei, disposto a encarar a verdade.
-          Estou indo embora.
Eu sabia que era essa a frase que ela diria, mas mesmo assim doeu. Como uma dor física, uma fisgada no peito:
-          Essa é a solução? Quer dizer, é isso mesmo que nós devemos fazer?
-          Eu não sei se é o que nós devemos fazer – ela retrucou – mas é o que eu devo fazer. O que eu preciso.
-          E nós não vamos discutir isso? Não há argumento? Já é decisão tomada? – fiquei perguntando.
-          Nós temos discutido nos últimos três meses. Eu não quero mais discutir.
-          Não, nós não discutimos – eu insisti - Não sobre nós. Nós discutimos sobre o sabão em pó, sobre a TV, sobre a assinatura do jornal, mas não sobre nós.
Ela sorriu. Um riso discreto:
-          E já não basta? Não há mais nada sobre o que tenhamos que discutir.
Eu silenciei por um momento.
-          E você vai embora?
-          Vou.
-          Mas eu te amo.
-          E eu também te amo.
-          Então, o que nos falta?
Ela apagou o cigarro:
-          Não sei. Mas se o nosso amor é esse martírio, eu não o quero mais.
-          Como assim? Como assim? Há quanto tempo nós estamos juntos? Vai ser tudo jogado fora?
-          Quinze anos. Esse é o tempo que eu te amo.
-          E isso não basta para nós ficarmos juntos?
Ela segurou minha mão:
-          É porque eu te amo que estou indo embora. É porque eu te amo que eu não quero mais sofrer, nem te fazer sofrer. Não vale a pena.
-          Não vale a pena ao menos tentar?
-          E o que você acha que eu tenho feito há não sei mas nem quanto tempo? Você acha que eu não tenho tentado te entender, entender o que se passa entre nós?
-          Eu não acho. Na verdade eu penso que nós ainda não tentamos.
-          Você é mesmo um egoísta – ela disse, virando o rosto para o outro lado.
-          Egoísta? Essa é a sua conclusão? Não é por nós – nós – que eu quero tentar?
-          Não, não é. É por você. Você que ainda não enxergou que a nossa vida não é mais a mesma. – Ela me encarou por um instante, antes de prosseguir – Não há mais alegria nessa relação.
-          Alegria? Como assim? Eu não te faço mais rir? O que você quer que eu faça? Que eu aja sempre com humor diante das coisas que acontecem?
-          Eu não preciso da sua ironia. Desse momento em diante, eu não quero mais nada de você. Aliás, já faz algum tempo que eu não quero nem espero mais nada.
Eu me levantei. Abri a torneira e fiz de conta que pegava um pouco de água, mas na verdade não sabia o que fazer. Larguei o copo, deixei a torneira aberta, virei novamente para ela:
-          Eu te amo. Há 15 anos que eu te amo. Não é o bastante pra você querer viver comigo?
Ela baixou a cabeça. Pareceu que estava chorando. Levantou-a novamente:
-          Não adianta mais nada. Essa cena é inútil. Não se trata de 15 anos ou de um dia, você não entende? O que era bacana nessa relação, o que parecia ser a razão dela,  acabou. É porque eu sei que você me ama e porque eu também te amo que estou indo embora.
-          Eu não entendo.
-          Não importa. Eu cheguei à conclusão que eu preciso ser um pouco egoísta também, que eu preciso me afastar de você pra minha vida voltar a ser legal.
-          De repente, depois de 15 anos, eu virei um egoísta desalmado.
Ela riu. Um riso de ironia:
-          Durante muito tempo nós vivemos coisas muito boas, momentos muito felizes. Difíceis também, é verdade. Mas, de repente, já faz um tempo, o ruim passou a superar o bom, são mais momentos difíceis do que alegres. E eu não quero mais isso.
-          Os meus argumentos terminaram – eu disse, fechando a torneira. Voltei a olhá-la, agora ajeitando a mecha de cabelo, brincando com a xícara sobre a mesa. Então, senti uma dor muito profunda no peito, como se alguma coisa estivesse faltando ali dentro de mim. Sentei de frente para ela e toquei sua mão. Ela não revidou como eu poderia supor. Antes, apertou meus dedos com carinho.
-          Como eu vou viver sem você? – Perguntei.
Ela sorriu com muita sinceridade, como da primeira vez que disse que me amava:
-          O tempo, meu amor, há de dar conta disso. Não tenha medo.
Ela tinha razão, eu sabia. Então, abaixei a cabeça sobre a mesa e chorei. As mãos dela  ainda apertando os meus dedos. 

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Três vezes Miranda

Eu conheci Miranda, a menor, quando tínhamos sete anos e fomos matriculados na mesma escola. Ela usava uns óculos de vidro grosso e o cabelo invariavelmente amarrado num “rabo de cavalo” que pouco valorizava os seus fios dourados. Dizer que era possível valorizar o rosto daquela menina até que é muito, porque de bonita ela não podia ser chamada. Além dos olhos, que enxergávamos como se fosse através de uma lente de aumento, tinha o nariz grande demais para seu rosto ovalado e o corpo muito magro e desengonçado. Talvez sua maior qualidade fosse a paciência, que exercitava diariamente, sempre muito silenciosa e compenetrada durante as aulas. Mas não me entendam mal, não é que fosse feia. Apenas não é o que poderia se chamar de uma menina bonita, dessas que chamam a atenção. Essa foi a primeira Miranda que eu conheci, a Ângela. Só mais tarde é que descobri que havia mais duas: Rita, a do meio, e Sandra, a mais velha. Elas eram irmãs, como era de se esperar, e moravam a duas quadras da minha casa. Todos os sábados à noite eu as via caminhando para a igreja,abraçadas, numa escadinha humana, da mais alta para a mais baixa: Ângela, Rita e Sandra. Enquanto crescíamos, nunca as víamos nos bailinhos de fim de semana ou no cinema. Nunca variavam muito as roupas. Era comum ver uma Miranda num dia usando a roupa que a outra usara na semana passada, e vive-versa. Rita,a Miranda do meio, não usava óculos e tinha o hábito de ousar na indumentária. Percebia-se que para ela as saias tornavam-se mais curtas, as blusas mais decotadas e os batons mais vermelhos. Sandra, a mais velha, tinha a pele muito clara, usava óculos de aro fino e tinha o nariz da irmã mais nova - ou essa o da outra, provavelmente. Era a mais falante e aparentemente mais inteligente das três, sempre muito simpática e sorridente. Embora fosse feia. Como as irmãs. Nós, os rapazes do bairro, tínhamos muita curiosidade sobre a vida das Miranda. Por que nunca saíam de casa, a não ser para ir à escola e à igreja? Não namoravam? Não dançavam? Não gostavam de cinema? Não percebíamos na época, mas era essa a característica que as diferenciava de todas as outras moças do bairro. Talvez por vontade própria, ou não, o magnetismo que exerciam estava exatamente no fato de serem diferentes, isoladas e tão próximas, tão parecidas e tão distantes do resto da escola. Quando ficamos mais velhos, muitos de nós nos distanciamos,formamos família, deixamos a escola e o bairro e nunca mais nos vemos. Eu, pelo menos, nunca mais vi as Miranda e até as esqueci por completo. Até que conheci Clarice. A jovem bela à minha frente, olhos claros, cabelos louros, sorriso bonito. “Clarice do quê?”, eu perguntei.“Miranda”, respondeu. Sim, lá do bairro, filha da Rita. “Sei quem é o senhor.Minha mãe sempre fala do senhor”, ela me disse, com uma expressão esperta de simpatia. “E como vai a sua mãe? E as suas tias?”, perguntei curioso. E foi assim que fiquei sabendo que a Miranda do meio não casara, apenas tivera uma filha num romance eventual. Que as irmãs, essas continuavam castas, na sina contínua de serem diferentes de todas as mulheres (senhoras?) do bairro. Está viva, sim, como as irmãs. Moram juntas, lá no bairro. E quem quiser vê-las, basta ir à igreja, no sábado à noite. Não perguntei se apenas as três. Não ousei.Pois acabara de conhecer mais uma Miranda. Que agora eram quatro.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Para ler ouvindo

Sobre o que não foi dito


- Parece cansado.
- Pareço?
- Teve um dia difícil?
- Cheio.
- Você deveria trabalhar menos. Talvez...
- É preciso.
- Como?
- É necessário. O negócio depende de mim e, além disso, eu gosto de trabalhar. Me toma o tempo.
- Tudo bem, eu não quis ser inconveniente. Desculpe.
- Não, você não foi. Eu é que peço desculpas....

Estavam de pé, diante um do outro. Não fazia muito sentido a conversa que estavam tendo.
Ele não imaginou essa introdução. Pensou que, talvez, ela viesse até ele e lhe desse um abraço, quem sabe um beijo, mesmo que na face. Então, eles sorririam, falariam de banalidades como o tempo, o trânsito, e a nova cor dos cabelos dela. Estavam avermelhados. Um tom qualquer entre o vermelho e o laranja, o que lhe ressaltava a palidez do rosto. Dizem que as mulheres procuram mudar quando querem iniciar um novo ciclo em suas vidas, como se um regime, um novo corte de cabelo ou uma plástica possam apagar as lembranças não muito agradáveis do passado.

- Não quer sentar?
- Obrigada.

O garçom veio até eles. Anotou os pedidos dela, enquanto ele brincava com o guardanapo de pano.
Ela pensou em desistir. Teve vontade de sair, dar as costas a ele e todo o resto, sem prestar satisfação nenhuma. Achou que não deveria ter aceitado o convite, pois no momento em que o viu foi como se este último mês não tivesse acontecido. Parecia que ainda ontem tinham se encontrado. E como foi tola! De que adiantava pintar os cabelos e renovar o guarda-roupa, se nada mudaria quando o visse?
O garçom se afastou e seus olhos novamente se encontraram.

- Tenho pensado em você.
- Por favor, não foi para isso eu que vim.
- Eu sei, só que não posso evitar. Eu penso.
- Está bem. Sobre o que você pensa?
- Em você e em nós...
- Já não existe mais um nós. Não perca seu tempo com isso.

Silêncio. Ele tomou mais um gole do uísque.

- Quantos copos você já bebeu?
- Não contei.
- Você não deveria beber tanto. Não vale a pena.
- Eu não bebo. É só hoje. Precisava de coragem.
- Para falar comigo? Desse jeito você me faz sentir culpada, e eu não deveria, não é mesmo?
- Estive na nossa casa, ontem.
- Esteve?
- Passei por lá. Está vazia. Você deveria ir morar lá.
- Não quero. As recordações não são boas.
- Nenhuma delas?
- Houve um tempo em que foi bom.
- Foi, não foi? Nós rimos muito naquela casa.
- Até não termos mais motivos.
- Eu não rio mais.

Ela abriu a bolsa, pegou um cigarro e o acendeu. Ele lembrou-se da primeira vez desse gesto. Eles estavam sentados como agora, só que no bar da faculdade. Ele achou que havia cometido um tremendo erro, pois não tinha a intenção de namorar uma fumante. Porém, quando o tempo foi passando, as garrafas vazias se acumulando sobre a mesa e o assunto ficando cada vez mais interessante, nem o mau hálito e o cheiro da fumaça importavam mais. Era ela. Não sabia como, mas sabia que havia encontrado uma mulher que lhe dava prazer só no fato de estar junto. E valeu a pena. Cada hora e dia que estiveram juntos tinham significado mais do que ele próprio desejara. Parecia que nada poderia mudar isso.

- Engraçado. Você que me traiu e eu é que me sinto culpada.
- Não tenho mais como pedir perdão.
- Por que me contou? Por que, diabos, você tinha que me contar?
- Não sei. Não podia mais esconder de você. Não era justo...
- Vocês têm se visto?
- Como?
- Você a vê? Fala com ela?
- Não, não. Nunca mais a vi. Eu já disse, não acredita?
- Sim, desculpe. Só não consigo conviver com isso.
- E você acha que eu consigo?
- Não sei. Mas não me peça para entender como você consegue me amar, se me traiu.
- Nem me peça para explicar, eu não conseguiria.

Ela apagou o cigarro enquanto o garçom substituía os copos.

- Não posso ficar mais. Tenho que ir.
- Um compromisso?
- Sim.
- De que tipo? Posso saber?
- Você quer saber se eu tenho um encontro?
- Desculpe, eu não tenho o direito.
- Não tem mesmo, mas posso dizer: não é um homem.

Ele esboçou um sorriso e pôs a mão sobre a mesa em direção a dela, que brincava com a haste da taça. Ela percebeu e retirou a mão, antes que ele a tocasse.

- O que você queria falar comigo?
- Nada. Só conversar.
- Não há mais muito para se dizer.
- Eu não acho.
- Não acha?
- Não. Na verdade acho que não dissemos nada.
- Foi dito quase tudo e quase tudo não adiantou.
- Quase... então alguma coisa fez efeito.
- Eu não quis dizer isso. Quis dizer que conversar não resolve os nossos problemas.
- E o que resolveria?

Ela acendeu outro cigarro. Ele pensou em abraçá-la e beijá-la como um louco. Pensou em ajoelhar-se e pedir perdão diante de todo mundo.

- Talvez não haja solução.
- Se é assim que você pensa, só me resta acreditar.
- Eu lamento.
- Não lamente.

Ele tomou o resto do uísque num gole só e fez sinal ao garçom para trazer a conta.

- Ao menos, pense a respeito.
- Do quê?
- Da casa. Em morar lá.

Ela pensou em chorar e no quanto seu coração estava partido e no quanto amava o homem à sua frente. 

- Há uma placa de venda, não há? Com certeza, alguém vai se interessar.
- Está bem.
- Preciso ir.

Levantou-se. Não estendeu a mão, nem o rosto, nem ele levantou-se.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Declaração

Não há virtudes no amor, ela me disse. Porque o amor precisa estar descarnado, fútil, sem os zelos da consciência cristã para entregar-se de fato. O amor não existe, eu explico. Porque não quero dar nomes aos sentimentos, nem me sentir preso à vaidade de estar conquistado.

Não quero amor de menina, ela insiste, e continua: de receber flores ou presentes ou mensagens, quero um amor despudorado. Eu replico, porque gosto de argumentar. E não deixar que essa experiência termine. De que vale ler mil livros se não perdemos tempo saboreando as palavras?

E continuamos nessa discussão, enquanto, sem palavras que as definam, trocamos olhares, cumplicidades, gestos. E esses sentimentos nos exaurem, terminando em sorrisos, água, sexo.

Nossa história de amor tem final feliz todos os dias. Porque não é o beijo que desperta a princesa, é o sentimento de sentir-se protegida, amparada, completa.  Ainda que de menina, continuo a sentir por ti essa coisa, que não há léxico que defina.

P.S.: Como já disse Fernando Pessoa, “todas as cartas de amor são ridículas”.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Para ler ouvindo


Caro João,

Eu sei que te chateio a te contar das minhas dores. Mas, de que vale a dor, se não é para dela tirarmos alguma lição? É uma pena e uma verdade que os momentos mais tristes e dolorosos sejam aqueles mais significativos em nossas vidas. São deles que tiramos inspiração para os poemas, para as tragédias e comédias.

E são deles que mais lembramos. E, às vezes, é para eles que jogamos a culpa das nossas neuroses e desvios de caráter.

Sim, eu vivi momentos felizes e a eles recorro quando quero esconder a tristeza que me toma conta. Porque a dor, essa nunca passa. Ela fica ali, escondidinha, quieta e até suportável. Mas volta, invariavelmente, todos os dias, como a te dizer que é efêmera e existência.

Não, João, eu não esqueço. Até suporto. Até vivo, apesar de tudo. E, às vezes, dou gargalhadas para sufocar o sofrimento. E é sozinho, andando, comendo, lendo ou te escrevendo, que me assalta a saudade. E é físico, tenho que confessar. É físico porque meu corpo cede a ela. É físico porque me desnorteia a existência.

Aí, eu finjo que não é comigo. Busco na imundície do dia, razão para continuar. E continuo. Apesar de tudo.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Todas as vidas. Ou nenhuma vida.


Tínhamos 40.  Até então eu não sabia, mas ela tinha a mesma idade que eu, quando a vi sentada na mesa do Café. Estava atenta, lendo não sei o quê. Passei por ela distraído e foi quando aconteceu o grande clichê de nossas vidas: minha xícara escorregou e o café se esparramou sobre a mesa. Foram minutos de desespero enquanto tentávamos desculpar-nos mutuamente. Eu a dizer “desculpe”, ela se esforçando em ser simpática, como se não fosse nada demais. Depois de tudo limpo, houve um desconforto mútuo, um silêncio constrangedor que apanhou nosso pensamento e nos uniu num sorriso. Que sorriso! O mundo se abriu naquele instante e decidi que nunca mais queria vê-la de outra forma. Nem que todos os sacrifícios fossem necessários, de alguma forma, eu precisava fazê-la sustentar o riso eternamente, pois se tratava de uma emoção que eu nunca antes presenciei.

Não vou contar minha história antes dos 40 anos, porque não tenho história antes de conhecer Lúcia. A partir daquele dia, éramos um par e isso bastava. Discutimos filosofia, assistimos jogos de golfe na tevê (um enfado para mim, mas que ela adorava), escrevemos poesia em guardanapos de botequim, vimos muitos filmes e muitas pessoas nos viram. Todos os dias, sempre juntos.

Não nos casamos. Não sei porque, nem tenho pretensão de saber. Apenas convivemos assim, como se fôssemos um jovem casal de namorados nos filmes da matinê. Nossa vida era um sonho tranquilo, invejável e previsível.

Quando completamos 60, olhamos para trás pela primeira vez. Houve um lampejo de tristeza nos olhos dela, uma sombra escura que se dissipou em algumas horas. É que lembramos que esquecemos de ter um filho. Naquelas horas em que raciocinamos a respeito e a mágoa do tempo perdido apareceu, rezamos juntos para que o remorso nunca nos ameaçasse. Decidimos esquecer.

Nos outros 20 anos, viajamos muito. Lúcia estava extremamente curiosa. Ela queria saber a origem das coisas, dos povos, das histórias que os livros contavam. Fizemo-nos de bandeirantes e escavamos muitas partes do mapa atrás das respostas que sabíamos não existir. Já não tínhamos as mesmas pernas e braços, embora não tivéssemos consciência disso e, muitas vezes, cansamos em demasia. Arriados nos prados ou em qualquer lugar onde pudéssemos parar, ficávamos observando o céu e brincando de identificar as nuvens.

Este era o seu passatempo favorito! Deitava-se em algum lugar aberto, barriga para cima, fechava os olhos e me pedia para descrever o céu. Eu lhe contava histórias que inventava na hora, sobre príncipes que buscavam água para suas amadas na fonte das nuvens, ou sobre pássaros que construíram um ninho lá em cima e nunca mais voltaram para rever os seus. Então, ela ria. Um riso solto, divertido e infantil. E eu, era o homem mais feliz do mundo.

Um dia, ela fechou os olhos numa tarde dessas e nunca mais abriu.

Eu tinha 80 anos nesse dia. Não sei quantos tenho agora. Não me interessa saber. Olhei no espelho esta manhã e não me enxerguei na imagem que vi. Eu vi um velho e Lúcia nunca amou um velho. Eu vi um homem triste e Lúcia nunca me deixou triste. Eu vi um velho triste e sem imaginação. Se fosse assim, como eu poderia criar as histórias que a faziam tão feliz? Espero um dia encontrá-la novamente. Talvez nas nuvens, esperando um copo d’água, ou construindo o nosso ninho, ou apenas sorrindo e me fazendo sentir novamente um homem com vontade de viver.

terça-feira, 29 de maio de 2012


Caro João,



Sabe quando você se pergunta por que as meias sempre furam no dedão? É. Não é no calcanhar, nem na sola do pé, é no dedão. Será que os seus dedos crescem ou as traças sentem um prazer mórbido em mordiscar a cobertura do dedão? E por que as fábricas, tão evoluídas tecnologicamente, ainda não descobriram um jeito de fazer meias que não furem nos dedões?

Parece bobagem, não parece? Não só parece como é. Mas eu comecei essa carta assim porque queria te falar sobre os detalhes.

Esses instantes que passam, acontecem, e se não fosse por eles, a nossa vida poderia ser diferente.

Sabe do que estou falando?

Daquela vez que você voltou pra buscar uma caneta e perdeu o ônibus e teve que esperar meia hora até pegar o próximo. Merda! E tantas canetas poderiam ser compradas no caminho...

E daquela vez que você disse “Vou pensar e te respondo amanhã”, e amanhã já não havia mais chance, nem resposta a ser dada.

Ou daquele beijo que você não deu, daquela palavra que não foi dita: obrigado, te amo, estou feliz assim, quero mais, prefiro de outro jeito...

E tudo mudou desde então.

Como é que você descobre que está sendo traído, João?

Porque há um silêncio frio durante o jantar? Por que as suas piadas já não são mais engraçadas? Ou por que você não presta mais atenção naquela história que ouviu mil vezes?

Pode ser qualquer coisa: uma xepa de cigarro de uma marca diferente deixada na sacada, uma toalha dobrada de forma diferente, um perfume novo, uma resposta errada...

E tudo que era perfeito deixa de ser.

Sabe por quê? Porque não existe receita e você não prestou atenção nos detalhes. São eles que fazem a diferença.

Você conhece a história do cara da gravata? Ele preferiu comprar a gravata de algodão ao invés da de seda. Pois bem, naquele dia o trem estava saindo e ele enfiou a pasta na porta para poder entrar, mas o motorista fechou a porta mesmo assim. Ele puxou a pasta, mas a gravata continuou trancada na porta. Ele saiu correndo e tentando puxar a gravata, mas não conseguiu porque ela era de algodão e mais forte que a de seda, que teria se rasgado. Ele teve a cabeça arrancada no final da estação.

Não sei porque as meias sempre furam no dedão, mas eu prefiro comprar só gravatas de seda.


quinta-feira, 24 de maio de 2012

Para ler, ouvindo: Copas


Nós, que nos amávamos tanto

Frio. Estava frio. Não sei se fora ou dentro do quarto. Provavelmente, fora. Mas por que eu sentia tanto frio?
- Nós não temos mais nada para dizer um ao outro. - ela disse.
- Como? – eu perguntei, incrédulo
- Não temos mais assunto. - ela repetiu.
- Estou com frio. Você está sentindo frio? – Eu perguntei, fechando a janela.
- Não. E não importa.
- O aquecimento não está funcionando direito. No mínimo, estragou novamente.
Ela me puxou pela camisa:
- Você me ouviu.
- Sim, mas do que você está falando?
- De nós dois. Nós precisamos conversar.
- Eu não entendo. – disse sincero – Há pouco você disse que não tínhamos mais sobre o que conversar.
- Foi uma metáfora.
- Você agora fala em metáforas? – Eu perguntei, sentando na cama e olhando-a nos olhos. Ela permanecia impassível.
- Foi e é uma metáfora de que o amor se foi.
- Como assim: se foi? Do jeito que você fala parece que ele nunca esteve aqui.
- Não me torture – ela pediu, levando a mão aos olhos. Estava chorando? – Estou tentando ser adulta. Tendo uma conversa de adultos.
- Conversa de adultos? É assim que os adultos conversam? Pois eu prefiro ser criança. Prefiro não entender sobre o que os adultos falam...
- É por isso que não dá mais certo – ela interrompeu.
- Do que afinal nós estamos falando? – eu perguntei, me levantando. Procurei um cigarro. Tinha parado de fumar.
- De nós dois. E de como já não somos mais felizes.
- Você não é feliz?
- Não. Você é?
- Eu sou. Eu a amo. E sempre pensei que você me amasse também.
- Eu amei...- Ela me olhou com um sorriso frágil nos lábios.
- Quer dizer que já não ama mais.
- Não sei. Não tenho mais certeza.
- Por quê? Eu tenho culpa?
- Também não sei. Talvez seja eu a culpada. Nós já não temos mais sobre o que conversar...
- É uma metáfora de novo? – eu perguntei com raiva.
- Você está sendo tolo...
- Como assim, tolo? Há pouco era uma metáfora. Não é mais?
- Você lembra como a gente sempre tinha assunto? Lembra como as nossas conversas eram intermináveis...
- E não são mais?
- Você não notou, não é? Não percebeu que há muito a gente só fala sobre contas e salários e compras e...
- E sobre o que mais, duas pessoas adultas, que conversam constantemente, deveriam conversar?
- Sobre nós. Sobre as coisas que nós gostamos. Sobre as coisas que sonhamos ou queremos, sobre os nossos planos.
- Nós já falamos sobre tudo. Me diga, conte pra mim os seus planos, me diga o que eu ainda não sei...
- Seu ceticismo não ajuda em nada.
- Perdão. Perdão – eu repeti, o frio me consumindo.- Não quero parecer incrédulo. Eu realmente quero conversar.
- Não há mais nada sobre o que conversar – ela encostou a mão na minha – Eu acho que a gente acabou de conversar.
Eu retirei a minha mão e berrei:
- É uma metáfora, certo? Toda essa merda de conversa é uma metáfora. Me diga claramente: o que você quer?
- Eu quero ir embora. – ela disse calmamente.
Eu senti muito frio. Um arrepio percorreu meu corpo. Tive vontade de gritar e de bater nela. De socar-lhe o estômago enquanto ela gemesse de dor e implorasse perdão. De esbofetear-lhe o rosto, de puxar-lhe o cabelo, de fazê-la contorcer-se no chão e implorar piedade. E então eu diria: viu como você ainda tem alguma coisa para me dizer?
Mas me calei. E puxei um casaco.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Podre


O ralo arrasta a sujeira
Pra brincar com as baratas caseiras.
É festa lá embaixo, no bueiro
Quando os insetos se perdem no jantar.
Muitos cheiros exalam 
E as ratazanas embriagadas fazem amor
Soltam gargalhadas, dizem palavrões
Se contorcem de dor, de gozo e desejo
Morrem no êxtase.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Para ler, ouvindo: O Arqueiro.


Caro João,



Hoje é um dia como qualquer outro, apenas com uma diferença: eu resolvi te escrever. Há muito tempo que eu adiava esse momento de esclarecer algumas coisas que nós nunca chegamos a falar abertamente, ou que disfarçamos não existir. Estou escrevendo porque tenho medo, ou vergonha, sei lá, de dizer pessoalmente. Esse já é, inclusive, um dos pontos que devo te contar nessa carta. Faz tempo que guardo comigo esses segredos, esses “mistérios”, que durante algum tempo até foi legal que existissem. Isso porque criava uma certa aura que eu gostava, uma aura e uma máscara que não aguento mais usar. Não foram muitas as vezes que tive esses diálogos francos na minha vida, mas acho que está na hora de sacudir o pó do que não foi feito e começar a dizer coisas francas, de forma franca, como toda pessoa adulta deveria fazer.

Bem... por onde começo? Como no horóscopo: trabalho, amor, família? Não sei. Talvez eu escreva de forma desordenada e caiba a ti juntar as peças para tentar formar alguma visão geral.

Não lembro quando foi a primeira vez, mas eu sei que senti. Tudo seria diferente e mais amargo a partir daquele momento. Estava fadado a sofrer, o que não é um destino bom para ninguém. Esse sofrimento, que corta, dói, às vezes emudece, às vezes provoca lágrimas, é um sentimento indescritível. Começa com uma hesitação, continua na cabeça, fazendo-a doer e termina nos olhos, onde todas as águas parece que desabrocham. Já chorei muitas vezes, sabia? Sim, eu sei que tu sabes. Chorei por dentro e por fora, embora por fora pareça ser mais simples e menos doído.

Qual é o pior sofrimento? Talvez a dor da perda da morte, talvez a dor da perda pela rejeição, talvez a dor da solidão, talvez a dor de ser incapaz de falar coisas como essas para todo mundo ouvir. Talvez o som de uma palavrinha tão pequena quanto o amor.

Já fui amado, eu sei. Mas não do jeito que eu queria, e talvez eu queira demais. Nunca amei ninguém, o amor dos amantes. Amei pai e mãe, que são sagrados. Amei amigos como se fossem irmãos, amei irmãos como pessoas queridas. Amei ações, palavras, livros, músicas, histórias, filmes, gestos, crianças, mas nunca amei do jeito que eu queria. Talvez, eu quisesse demais. Pode parecer bobagem falar disso, porque sou sabedor que nada é como nós desejamos e nada acontece como a gente quer. O pior, é que essa minha sabedoria me faz mais mal ainda. Melhor se eu não soubesse de nada, e xingasse Deus ou quem de direito sobre o meu direito de ter as coisas que queria ter.

Tu podes dizer que é cedo ainda, que sou muito jovem, que a vida ainda tem muito pra me oferecer ou pra me dar. Pode ser, mas não quero amanhã. Eu queria ontem. Eu quero hoje.

O Enforcado

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Caro João,

Pode a vida toda ser como uma gargalhada?

Dessas em que a barriga se dobra, os dentes ficam à mostra e toda a emoção pode acabar nos olhos, embaçando a visão, numa sensação extasiante de alegria? Ou é preciso conviver com as rugas da decepção, com a imparcialidade do medo, a vergonha da desordem?

O tempo passa e é como uma fuga de Bach, forte e triste, mas insuportavelmente linda.

A felicidade pode ser um domingo à tarde, sentado em volta de um caixote de madeira, enquanto rimos das nossas imperfeições, ao rirmos das imperfeições alheias.

O clown de nós mesmos incorpora a cena:

Personagem 1: Ele disse que ela disse que ele disse que tu és um cara bacana.

Personagem 2: Ele disse que ela disse que ele disse que tu és um cara "oquêi".

E rimos disso e de todo o resto, enquanto o tempo passa.

Flashback: vou atravessar a sala e tem um tigre no meio. Acaricio sua cabeça e ele come meu braço. Miro seus lindos olhos claros e ele me diz: "Vou comer o resto. Não hesite!".

Brincamos de roda, em volta do caixote de madeira, bebendo levedo e trocando de posições, enquanto o tempo passa. Enquanto celebramos um sentimento que não é dito, mas é quase palpável de tão concreto. É o léxico do abstrato.

Pena que a vida toda não é uma gargalhada.

E talvez em alguns dias mais, aquela gargalhada possa transformar-se num eco de desespero.

É como se eu escrevesse no meu diário: Hoje foi igual a ontem. Mas eu não tenho diário, nem semanário, nem anuário. Nem bienal.

Talvez tu não entendas sobre o que eu estou escrevendo. Talvez tu entendas um dia. Talvez tu nunca chegues a ler até aqui.

Mas é isso. Nem tão bom, nem tão mal: é o vértice da mediocridade.