quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Para ler ouvindo

O fascista - uma introdução

O fascista – uma introdução

Ele abriu os olhos e viu uma mancha no teto branco, causada por alguma infiltração. Voltou a fechar os olhos. Quando os abriu, mirou novamente no teto e depois observou as outras partes do quarto como a tentar lembrar de quem era e o que fazia ali. Deteve-se um pouco no corpo nu ao seu lado, observando o negro dos cabelos, o traço forte da linha do rosto, as sobrancelhas grossas, os cílios longos cerrados e então se levantou. Catou no chão a cueca, as meias e o sapato, e mais à frente, sobre uma cadeira, a camisa, a calça e o paletó. Tinha tido o bom senso de não deixá-los amassar: sabia que tinha um compromisso essa manhã e não haveria tempo de ir até em casa e trocar de roupa. Dirigiu-se ao banheiro. Enquanto urinava, as roupas já penduradas atrás da porta, tentou lembrar de detalhes da noite anterior: uma boate, muitas doses de J&B com gelo, muitos cigarros (não havia encontrado os cigarros, eles acabaram?), e as mesmas canalhices ditas entre sorrisos de sedução. Sentiu uma forte dor de cabeça e lembrou-se que precisava urgentemente de um café e de um cigarro. Vestiu-se rapidamente, tentando não fazer muito barulho, ajeitou o cabelo com um pente sujo que encontrou no armário e saiu novamente para o quarto. Olhou o corpo nu sobre a cama e tentou lembrar se o sexo havia sido bom. Não tinha a menor ideia. Abriu a porta do quarto, fechou atrás de si e saiu. Pensou que talvez devesse ter deixado um telefone, talvez o sexo tivesse sido bom, afinal, mas sabia que provavelmente não passaria outra noite na cidade e o melhor era deixar isso para trás.
Já na rua, resolveu ir caminhando até o Ritz. Na esquina, viu uma banca de jornais já aberta, parou e pediu um maço de cigarros. Acendeu um antes de receber o troco e o tabaco irritou a sua garganta seca, fazendo que pigarreasse. “Preciso parar de fumar”, pensou. Ainda com o pulmão reclamando, continuou a tragar enquanto caminhava. Era uma manhã fria de outono e a cidade já começava a acordar: alguns ônibus passando, umas senhoras idosas com pacotes de pão nas mãos tagarelando umas com as outras, poucos carros nas ruas e os comerciantes ameaçando abrir as portas de suas lojas. Em meio cigarro, resolveu que era melhor mesmo tomar um café primeiro e o jogou no meio-fio. Sentiu frio e enfiou as mãos nos bolsos do paletó, acelerando o passo. Ao chegar ao Ritz, perguntou ao porteiro onde ficava o restaurante. No primeiro andar, ele disse. Tomou o elevador e quando a porta abriu já apareceu o salão cheio de mesas, duas delas ocupadas. Numa, havia um casal e, na outra, estava Oscar, que lhe acenou prontamente para que se sentasse. Caminhou até ele e no caminho notou que na outra mesa se tratava de um casal de turistas que cedo já estava muito disposto, com uma câmera fotográfica e um guia da cidade sobre uma das cadeiras.
Apertou a mão de Oscar sem dizer palavra e sentou. O garçom veio cheio de delicadeza e perguntou se ele desejava alguma coisa. Ele respondeu que sim, pediu duas xícaras de café, uma sem açúcar e outra com. Continuou calado, Oscar também, até que o garçom voltasse com o seu pedido. Agradeceu, tomou um grande gole de café sem açúcar e então olhou para o outro e disse: “Bom dia!”
Oscar sorriu, como que aquiescendo com sua excentricidade:
- Bom dia meu jovem. Parece-me que será um bom dia.
- Para você, todos os dias são bons.
- Não, não mesmo. Mas é verdade que eu gosto de dar a eles uma perspectiva positiva.
- Entendo. O bom e velho positivismo.
Oscar soltou uma gargalhada:
- Meu caro, se você não fosse tão bom em seu ofício, eu juro que investiria na sua carreira política.
- É mesmo? E por que você acha que eu seria um bom político?
- Porque você tem todas as qualidades de um: é bom argumentador, perspicaz, muito inteligente e, é claro, sarcástico.
- Isso é o que você chama de qualidades? Se nossos políticos tivessem essas qualidades, provavelmente teríamos um país melhor.
- Mas é aí que está o seu diferencial. Você tem senso de humor e só as pessoas inteligentes são bem-humoradas.
- Talvez você tenha razão, mas eu não me interesso por política partidária. Eu não acredito nela.
- Mas é claro, eu quase não lembrava que você era um anarquista.
- Agora é a minha vez de rir: Oscar, eu não sou suficientemente indignado para me tornar um anarquista. 
- Não é o que me parece, não por tudo aquilo que já conversamos sobre os problemas brasileiros.
- Eu repito: os problemas brasileiros não me interessam. Na verdade, nem me sinto muito um brasileiro. Sou um ser humano nascido nesse país, só isso, e como todos, eu tento sobreviver.
- Mas para sobreviver é preciso estar dentro do sistema, fazer parte da máquina que movimenta o país, daí o interesse das pessoas pelo que se passa no Brasil.
- Desde que eu era uma criança os problemas brasileiros são os mesmos. Mudam as moedas, os governos e as crises, mas a situação é sempre a mesma: somos um país em crescimento, uma economia em desenvolvimento e blá, blá, blá. Enquanto o povo não estiver suficientemente indignado para fazer alguma coisa a respeito, será sempre isso: blá, blá, blá.
- Eu não digo que você seria um bom político? Tem a habilidade natural de fazer as conversas convergirem para as suas opiniões, para o que lhe convém.
- O que me convém é que o me sustenta. No fim das contas, só o que me interessa é o que interessa para todo mundo: sexo e dinheiro. Ou dinheiro e sexo, melhor dizendo, porque o primeiro garante o segundo.
- Ah, ponto de vista interessante. E isso me lembra que estamos aqui para fazer negócios.
- Exatamente. Discutimos política enquanto tomamos café num hotel de luxo e tramamos o assassinato de alguém. Não é a síntese do capitalismo?
- Eu devo dizer, meu amigo, que essa sua capacidade de franqueza me fascina. Muitos jamais teriam coragem de falar em voz alta uma frase como a que você acabou de dizer.
- A minha lógica é muito simples: não se investiga o que não está escondido. Num país corrupto por natureza como o nosso, só os que tramam em salas fechadas é que são suspeitos. Além disso, trabalhamos para o governo, portanto, supostamente estamos do lado da lei. Então, qual é o trabalho dessa vez?
Oscar tirou de seu bolso uma pequena chave e a colocou sobre a mesa:
- O número do armário está na chave. Junto com as instruções haverá uma passagem aérea em seu nome. Nossos patrões querem que você tire umas férias depois desse serviço.
- Parece que as coisas vão esquentar por aqui, então.
- Bem, se estamos acertados é melhor eu voltar para a minha esposa. Ela está grávida, já lhe contei?
- Não, nunca falamos sobre nossas vidas particulares, lembra? Para mim você é o Oscar e só. Assim, com o eu sou o João. De todo modo, boa sorte.
- Para você também. Embora eu ache que um homem pragmático como você não deva acreditar em sorte, não é mesmo?
- É mesmo. Mas eu a aceito.
Oscar deu um leve sorriso e se levantou:
- Termine seu café, está na minha conta. – Então saiu.
Ele ainda observou o outro entrar no elevador antes de pegar a chave e guardar no bolso interno do paletó. Tomou um último do café com açúcar, tirou um cigarro, sem acendê-lo, e também se dirigiu ao elevador. Já no saguão do hotel, acendeu o cigarro, agora tragado com satisfação.