quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Hoje eu acordei tão só

Caro João,

Hoje eu acordei só.
Mais só do que eu merecia, como diz o poeta.

É, eu sei. Era corpo, não era alma.
São as dores da doença, João. As cicatrizes da ausência.
Talvez eu mereça porque não enxerguei o que era óbvio. Esqueci que o amor tem muitos disfarces.
São as lezeras da solidão.
Eu me arrasto nessa cama sem querer presença. Porque a noite é insone. Porque o sonho é recortado pela angústia de tantas palavras não ditas, de tantas cartas não escritas, tantas coisas nas gavetas, tantos sim-não sem sentido, tantos nomes nunca ditos, tantas sujeiras varridas, tantos silêncios sufocantes, tantos mesmos, tantos mesmos.

Só você que entende, João. Esse discurso sem nexo, essas elipses e seus significados. Essa carta para o mundo.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Retorno

Caro João,

É muita febre que eu sinto. Ressinto. Trava-me os olhos quase cegos de chorar. Não tenho tristeza, não tenho alegria, não tenho motivos de dizer. Por isso, há tempos não te escrevia. Secou-me o léxico, a vida. Vadia. Deixou-me são.

Silêncio. Interior da selva:

Para onde seguem os elefantes esquecidos? Que manada é essa de rotina vã?

Corta para o sofá da sala. Preto. Amassado. Vazio.

Rasguei tua última missiva, sabias? Não tinha espaço no meu arquivo para letras tão tortas, palavras tão secas, desordenada forma de se fazer entender. Rasguei. Não tenho vergonha. Mas li. E, disfarçadamente, apreendi o sentido.

Finjo-me de inocente. No carpet imundo da sala, resta uma lembrança tua. A marca insípida do teu descuido. Olho para ela e não te enxergo. Já não resta ilusão.

Arrasta-me a sensação de dor. E essa febre que não passa. Traspassa, João.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Para ler ouvindo


A febre


O carro parou na calçada em frente a casa e os homens saíram apressados, em corridas improvisadas, para alcançar a soleira e fugir da chuva. O primeiro deles abriu a porta, sem bater, e logo que deu o primeiro passo a água acumulada em seu sapato se misturou com o líquido vermelho em frente à porta. Deu um passo para o lado, permitindo que seu companheiro também entrasse e logo observou o corpo: estava no corredor, estendido, a mão esticada à frente, provavelmente na intenção de alcançar a maçaneta. Não tivera tempo. O outro percorreu o caminho inverso do sangue e percebeu que vinha desde o alto da escada. Foi subindo os degraus vagarosamente, com cuidado para não encostar na evidência, até chegar ao andar superior. Lá, novamente seguiu o rastro e encontrou o quarto, onde, supôs, havia acontecido uma luta. Havia sinais visíveis disso, como roupas espalhadas pela cama, um abajur caído, manchas de sangue nos lençóis, no chão, na maçaneta da porta e nas paredes.

No andar inferior, o outro homem agachou-se para observar o corpo mais de perto. Era uma mulher de pouco menos do que vinte anos, cabelos longos e castanhos, e pele clara. Seu vestido, de um vermelho forte e corte simétrico ao corpo bem feito, estava rasgado nas tiras, caindo sobre um seio e deixando à mostra o mamilo esquerdo. Ele percebeu que se tratava de uma menina bonita e apiedou-se dela ao lembrar-se de sua própria filha, de 15 anos. Ficou por alguns instantes observando a linha de seu rosto e imaginando o que o destino havia lhe preparado. Soltou um suspiro quase sonoro e recuperou-se, sobressaltado, ao ser tocado no ombro por seu colega que havia descido as escadas.

Os dois trocaram olhares sem dizer nada. Eram experientes em seu trabalho e não precisavam mais fazer comentários sobre as vítimas que encontravam pelo caminho. Ouviram as sirenes lá fora e compreenderam que era a equipe que chegava com os fotógrafos, a perícia e todo o resto. Iria começar a rotina.

Foram caminhando em direção à cozinha, que ficava à direita, paralela à porta. Um homem estava sentado numa cadeira em frente à mesa. A cabeça debruçada nos braços, soluçando baixinho. Ao seu lado, o telefone, ainda fora do gancho e uma moeda com a efígie virada para cima. 

Ele percebeu a chegada dos policiais e levantou o rosto. A pele estava vincada e vermelha, os olhos grandes, molhados, não disfarçavam seu desespero. Estendeu a mão, depois desistiu:
- Ela já voltou?
- Seu nome, por favor? – perguntou um dos detetives.
- Eu estou preocupado com ela – continuou dizendo, como se não tivesse ouvido a pergunta – É tão jovem, tão inocente, não deve andar sozinha pela rua. – Então se dirigiu diretamente ao policial – O senhor acha que ela volta?
- Sua esposa já voltou – respondeu – Está ali na sala. Mas está morta.
- Não, aquela não é minha esposa. Foi por isso que eu liguei para vocês. Eu não sei quem é essa mulher. Minha menina está na rua, ainda não voltou para casa e eu estou preocupado.
- Nós entendemos – disse o detetive, tentando controlar a situação, e continuou: – Mas o senhor precisa nos dizer o que aconteceu aqui.
- Nada, não aconteceu nada – disse o homem, voltando os olhos para a moeda sobre a mesa.
Um dos detetives soltou um suspiro de impaciência. O outro o segurou no braço, como a dizer “paciência”, e retrucou:
- O senhor entende que há uma mulher morta na sua sala?
O homem ergueu os olhos até ele, sem dizer palavra.
- Como é seu nome? – Insistiu o policial.
- Marcel – respondeu de modo quase inaudível.
- Pois bem, senhor Marcel, o senhor pode nos dizer o que aconteceu com sua esposa?
- Eu não sei – ele respondeu – Por isso liguei pra vocês.
O detetive voltou a mostrar impaciência e insistiu:
- Tudo bem, aquela não é sua esposa. Então, quem é?
- Uma vagabunda! – Respondeu rapidamente – Uma puta que encontrei na minha cama.
- E o senhor a matou?
- Eu não me lembro.
- Pois tente lembrar-se. É muito importante que o senhor nos diga.
- Eu não lembro de nada. Eu cheguei em casa, minha mulher não estava... Eu vim até a cozinha, joguei a moeda, o senhor entende? Eu tinha que decidir... subi as escadas... aquela puta estava lá... Aquela puta!
Os dois policiais se olharam, os técnicos da perícia já entravam pela casa e faziam muito barulho. Decidiram levar o marido à delegacia e tentar um depoimento outra hora.
- O senhor pode nos acompanhar? – perguntou um deles.
- Pra onde? – respondeu Marcel – Eu estou esperando minha menina... minha esposa...
Os homens o levantaram a contragosto e foram conduzindo para fora da cozinha. Ao chegarem à sala, Marcel parou ao ver o corpo. Eles tentaram forçá-lo a andar, mas ele resistia, parado.
- Esta é sua esposa? – Perguntou o detetive.
Marcel olhou para o corpo ensanguentado e não respondeu. Começou a chorar copiosamente e jogou-se ao chão, até não ter mais forças nos olhos e no peito e suas vistas se fecharem diante daquela imagem congelada na memória.

“Dizem que ontem eu a vi, mas eu não me lembro. Pode ser que seja verdade, porque ultimamente a minha cabeça tem me traído e já não consigo segurar na memória as imagens que quero. Quisera eu poder tê-la visto, ou ao menos, ter sentido seu cheiro: aquela fragrância leve de flor que, para mim, ela sempre exalava.

É engraçado como não consigo mais lembrar de algumas coisas, como se os dias tivessem desaparecido da minha história, ficando em seu lugar espaços negros e vazios. Porém, há coisas das quais me lembro com clareza, que não se apagam, persistem em meus pensamentos todos os dias, todas as vezes em que saio da letargia da minha doença e encontro lucidez ao abrir os olhos.

Uma dessas cenas é de quando a vi pela primeira vez. Não ontem, dessa eu não me lembro. Mas daquele domingo, da festa da coroação de Nossa Senhora. Ela caminhava, braços dados com a mãe, à caminho da missa. Usava um vestido branco, corpo feito, sorriso de criança, cabelos enfeitados com flores de laranjeira. Passou por mim como se não soubesse quem eu era, como se não me esperasse. Sorriu bonito, um sorriso largo e cheio de vida. Lembro que tremi, como se a minha alma tivesse fugido do meu corpo. Hoje sei que era verdade.

Não me lembro de muitas coisas que se sucederam desde então, mas sei que daquele dia em diante minha vida tornou-se um inferno, dividido entre a vontade de adorá-la e o medo constante de perdê-la.

Agora dizem que ela veio ontem. Eu não sei se é verdade, eu não me lembro. Mas fico aflito de pensar no que teria vindo fazer aqui, e no que teria acontecido a ela. Às vezes, tudo fica muito confuso. Mas não foi ontem que ela veio, eu sei. Porque de ontem, eu não me lembro de nada.”