O carro parou na calçada em frente a casa e os homens saíram
apressados, em corridas improvisadas, para alcançar a soleira e fugir da chuva.
O primeiro deles abriu a porta, sem bater, e logo que deu o primeiro passo a
água acumulada em seu sapato se misturou com o líquido vermelho em frente à
porta. Deu um passo para o lado, permitindo que seu companheiro também entrasse
e logo observou o corpo: estava no corredor, estendido, a mão esticada à
frente, provavelmente na intenção de alcançar a maçaneta. Não tivera tempo. O
outro percorreu o caminho inverso do sangue e percebeu que vinha desde o alto
da escada. Foi subindo os degraus vagarosamente, com cuidado para não encostar
na evidência, até chegar ao andar superior. Lá, novamente seguiu o rastro e
encontrou o quarto, onde, supôs, havia acontecido uma luta. Havia sinais
visíveis disso, como roupas espalhadas pela cama, um abajur caído, manchas de
sangue nos lençóis, no chão, na maçaneta da porta e nas paredes.
No andar inferior, o outro homem agachou-se para observar o corpo mais de
perto. Era uma mulher de pouco menos do que vinte anos, cabelos longos e
castanhos, e pele clara. Seu vestido, de um vermelho forte e corte simétrico ao
corpo bem feito, estava rasgado nas tiras, caindo sobre um seio e deixando à mostra
o mamilo esquerdo. Ele percebeu que se tratava de uma menina bonita e
apiedou-se dela ao lembrar-se de sua própria filha, de 15 anos. Ficou por
alguns instantes observando a linha de seu rosto e imaginando o que o destino
havia lhe preparado. Soltou um suspiro quase sonoro e recuperou-se,
sobressaltado, ao ser tocado no ombro por seu colega que havia descido as
escadas.
Os dois trocaram olhares sem dizer nada. Eram experientes em seu trabalho e não
precisavam mais fazer comentários sobre as vítimas que encontravam pelo
caminho. Ouviram as sirenes lá fora e compreenderam que era a equipe que
chegava com os fotógrafos, a perícia e todo o resto. Iria começar a rotina.
Foram caminhando em direção à cozinha, que ficava à direita, paralela à porta.
Um homem estava sentado numa cadeira em frente à mesa. A cabeça debruçada nos
braços, soluçando baixinho. Ao seu lado, o telefone, ainda fora do gancho e uma
moeda com a efígie virada para cima.
Ele percebeu a chegada dos policiais e levantou o rosto. A pele estava vincada
e vermelha, os olhos grandes, molhados, não disfarçavam seu desespero. Estendeu
a mão, depois desistiu:
- Ela já voltou?
- Seu nome, por favor? – perguntou um dos detetives.
- Eu estou preocupado com ela – continuou dizendo, como se não tivesse ouvido a
pergunta – É tão jovem, tão inocente, não deve andar sozinha pela rua. – Então
se dirigiu diretamente ao policial – O senhor acha que ela volta?
- Sua esposa já voltou – respondeu – Está ali na sala. Mas está morta.
- Não, aquela não é minha esposa. Foi por isso que eu liguei para vocês. Eu não
sei quem é essa mulher. Minha menina está na rua, ainda não voltou para casa e
eu estou preocupado.
- Nós entendemos – disse o detetive, tentando controlar a situação, e
continuou: – Mas o senhor precisa nos dizer o que aconteceu aqui.
- Nada, não aconteceu nada – disse o homem, voltando os olhos para a moeda
sobre a mesa.
Um dos detetives soltou um suspiro de impaciência. O outro o segurou no braço,
como a dizer “paciência”, e retrucou:
- O senhor entende que há uma mulher morta na sua sala?
O homem ergueu os olhos até ele, sem dizer palavra.
- Como é seu nome? – Insistiu o policial.
- Marcel – respondeu de modo quase inaudível.
- Pois bem, senhor Marcel, o senhor pode nos dizer o que aconteceu com sua
esposa?
- Eu não sei – ele respondeu – Por isso liguei pra vocês.
O detetive voltou a mostrar impaciência e insistiu:
- Tudo bem, aquela não é sua esposa. Então, quem é?
- Uma vagabunda! – Respondeu rapidamente – Uma puta que encontrei na minha
cama.
- E o senhor a matou?
- Eu não me lembro.
- Pois tente lembrar-se. É muito importante que o senhor nos diga.
- Eu não lembro de nada. Eu cheguei em casa, minha mulher não estava... Eu vim
até a cozinha, joguei a moeda, o senhor entende? Eu tinha que decidir... subi
as escadas... aquela puta estava lá... Aquela puta!
Os dois policiais se olharam, os técnicos da perícia já entravam pela casa e
faziam muito barulho. Decidiram levar o marido à delegacia e tentar um
depoimento outra hora.
- O senhor pode nos acompanhar? – perguntou um deles.
- Pra onde? – respondeu Marcel – Eu estou esperando minha menina... minha
esposa...
Os homens o levantaram a contragosto e foram conduzindo para fora da cozinha.
Ao chegarem à sala, Marcel parou ao ver o corpo. Eles tentaram forçá-lo a
andar, mas ele resistia, parado.
- Esta é sua esposa? – Perguntou o detetive.
Marcel olhou para o corpo ensanguentado e não respondeu. Começou a chorar
copiosamente e jogou-se ao chão, até não ter mais forças nos olhos e no peito e
suas vistas se fecharem diante daquela imagem congelada na memória.
“Dizem que ontem eu a vi, mas eu não me lembro. Pode ser que seja verdade,
porque ultimamente a minha cabeça tem me traído e já não consigo segurar na
memória as imagens que quero. Quisera eu poder tê-la visto, ou ao menos, ter
sentido seu cheiro: aquela fragrância leve de flor que, para mim, ela sempre
exalava.
É engraçado como não consigo mais lembrar de algumas coisas, como se os dias
tivessem desaparecido da minha história, ficando em seu lugar espaços negros e
vazios. Porém, há coisas das quais me lembro com clareza, que não se apagam,
persistem em meus pensamentos todos os dias, todas as vezes em que saio da
letargia da minha doença e encontro lucidez ao abrir os olhos.
Uma dessas cenas é de quando a vi pela primeira vez. Não ontem, dessa eu não me
lembro. Mas daquele domingo, da festa da coroação de Nossa Senhora. Ela
caminhava, braços dados com a mãe, à caminho da missa. Usava um vestido branco,
corpo feito, sorriso de criança, cabelos enfeitados com flores de laranjeira.
Passou por mim como se não soubesse quem eu era, como se não me esperasse.
Sorriu bonito, um sorriso largo e cheio de vida. Lembro que tremi, como se a
minha alma tivesse fugido do meu corpo. Hoje sei que era verdade.
Não me lembro de muitas coisas que se sucederam desde então, mas sei que
daquele dia em diante minha vida tornou-se um inferno, dividido entre a vontade
de adorá-la e o medo constante de perdê-la.
Agora dizem que ela veio ontem. Eu não sei se é verdade, eu não me lembro. Mas
fico aflito de pensar no que teria vindo fazer aqui, e no que teria acontecido
a ela. Às vezes, tudo fica muito confuso. Mas não foi ontem que ela veio, eu
sei. Porque de ontem, eu não me lembro de nada.”