sexta-feira, 20 de julho de 2012

Razão


- Sabe o que é isso? – Ela perguntou, mostrando uma leve mancha entre os dedos indicador e angular.

Ele a observou e nada disse.

- É a velhice – ela respondeu. É a velhice.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Para ler ouvindo

Fim de caso


“Quero chorar porque me dá gana, 
como choram os meninos do banco mais atrás, 
porque não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha, 
mas um pulso ferido que ronda as coisas do outro lado.”


(Poema Duplo do Lago de Éden) Federico Garcia Lorca

Tudo começou quando ela quis jogar fora as minhas camisetas velhas. Eram velhas, eu sei. Largas, gastas, algumas sem colarinho, outras com nódoas marrons na superfície branca, mas eram minhas companheiras nas caminhadas, nas manhãs de sábado no quintal e nas tardes de domingo em frente à TV. Naquele dia percebi que havia algo estranho. Depois de brigarmos efusivamente sobre de quem era a guarda das camisetas velhas e, extasiados, darmos às costas um ao outro, indo eu parar no escritório enquanto ela separava infinitamente as roupas na lavanderia, eu enxerguei que havia algo errado.
“São a suas camisetas, as suas músicas, os seus livros”, ela havia dito, querendo dizer bem mais que isso. “É só um pouco de espaço para minhas coisas que eu peço”, respondi, irritado. Puxei uma camiseta com a efígie do Che Guevara das suas mãos e me arrependi do que falei. Mas tive orgulho e saí dali, indo me refugiar na escrivaninha, fingindo que lia não sei o quê.

O silêncio que se seguiu durou quase uma semana e não terminou como de costume – quando costumávamos nos reconciliar nas dobras do lençol, esfuziantes entre o gozo e os pedidos de desculpas. Quando voltamos a nos falar, foi como se nada tivesse acontecido, nem um “desculpe”, ou “vamos conversar a respeito”. Foi só um vazio, um intervalo indigesto de sete dias entre a última frase e um “bom dia” no café da manhã. Nesse dia, ela estava mais alegre. Não sei porquê e confesso que isso me intrigou. Antes, quando as coisas eram como antigamente, ela sempre me contava do seu dia no trabalho, das novidades e das fofocas dos colegas que eu nem conhecia. Se agora estava alegre é porque algo de bom havia lhe acontecido. Mas eu já não era tão confiável a ponto dela me contar. Senti-me traído e ao mesmo tempo com raiva. Deixei passar.

Dias depois, brigamos por causa da marca do sabão em pó e, no seguinte, por culpa da demora na fila do caixa do banco. Noutro dia, o motivo foi uma frase irônica (ela jura que percebeu ironia) que eu disse no jantar na casa de uns amigos.
No fim, o motivo já não importava. As discussões eram cada vez mais frequentes e longas, mais danosas e mais ofensivas. Os momentos de silêncio entre nós ficaram mais comuns e até o regresso para casa, após um dia de trabalho, parecia ser um sacrifício.  

Quando aconteceu, já não havia mais surpresa, ainda que fosse triste. Eu cheguei da videolocadora, havia alugado “A doce vida” (que ironia) e ela estava sentada na mesa da cozinha. Uma mecha de seu cabelo, preso de forma displicente por um elástico, caía sob o rosto. Ela tinha a cabeça um pouco reclinada, como a admirar o conteúdo da xícara de café sobre a mesa, ao lado do cinzeiro. Na mão, um cigarro pela metade. Ela o levou até os lábios e fumou mais uma vez, antes de olhar-me nos olhos.

-          Precisamos conversar – disse.
Eu entendi, mas tentei despistar, tirando uma xícara do armário e me servindo também de café da cafeteira.
-          Quando eu era mais jovem e namorava, essa era uma frase que sempre me assustava.
Ela me encarou, expressão séria, como a se irritar com a minha espirituosidade:
-          Não sei se assusta, mas é verdade.
Eu sentei, disposto a encarar a verdade.
-          Estou indo embora.
Eu sabia que era essa a frase que ela diria, mas mesmo assim doeu. Como uma dor física, uma fisgada no peito:
-          Essa é a solução? Quer dizer, é isso mesmo que nós devemos fazer?
-          Eu não sei se é o que nós devemos fazer – ela retrucou – mas é o que eu devo fazer. O que eu preciso.
-          E nós não vamos discutir isso? Não há argumento? Já é decisão tomada? – fiquei perguntando.
-          Nós temos discutido nos últimos três meses. Eu não quero mais discutir.
-          Não, nós não discutimos – eu insisti - Não sobre nós. Nós discutimos sobre o sabão em pó, sobre a TV, sobre a assinatura do jornal, mas não sobre nós.
Ela sorriu. Um riso discreto:
-          E já não basta? Não há mais nada sobre o que tenhamos que discutir.
Eu silenciei por um momento.
-          E você vai embora?
-          Vou.
-          Mas eu te amo.
-          E eu também te amo.
-          Então, o que nos falta?
Ela apagou o cigarro:
-          Não sei. Mas se o nosso amor é esse martírio, eu não o quero mais.
-          Como assim? Como assim? Há quanto tempo nós estamos juntos? Vai ser tudo jogado fora?
-          Quinze anos. Esse é o tempo que eu te amo.
-          E isso não basta para nós ficarmos juntos?
Ela segurou minha mão:
-          É porque eu te amo que estou indo embora. É porque eu te amo que eu não quero mais sofrer, nem te fazer sofrer. Não vale a pena.
-          Não vale a pena ao menos tentar?
-          E o que você acha que eu tenho feito há não sei mas nem quanto tempo? Você acha que eu não tenho tentado te entender, entender o que se passa entre nós?
-          Eu não acho. Na verdade eu penso que nós ainda não tentamos.
-          Você é mesmo um egoísta – ela disse, virando o rosto para o outro lado.
-          Egoísta? Essa é a sua conclusão? Não é por nós – nós – que eu quero tentar?
-          Não, não é. É por você. Você que ainda não enxergou que a nossa vida não é mais a mesma. – Ela me encarou por um instante, antes de prosseguir – Não há mais alegria nessa relação.
-          Alegria? Como assim? Eu não te faço mais rir? O que você quer que eu faça? Que eu aja sempre com humor diante das coisas que acontecem?
-          Eu não preciso da sua ironia. Desse momento em diante, eu não quero mais nada de você. Aliás, já faz algum tempo que eu não quero nem espero mais nada.
Eu me levantei. Abri a torneira e fiz de conta que pegava um pouco de água, mas na verdade não sabia o que fazer. Larguei o copo, deixei a torneira aberta, virei novamente para ela:
-          Eu te amo. Há 15 anos que eu te amo. Não é o bastante pra você querer viver comigo?
Ela baixou a cabeça. Pareceu que estava chorando. Levantou-a novamente:
-          Não adianta mais nada. Essa cena é inútil. Não se trata de 15 anos ou de um dia, você não entende? O que era bacana nessa relação, o que parecia ser a razão dela,  acabou. É porque eu sei que você me ama e porque eu também te amo que estou indo embora.
-          Eu não entendo.
-          Não importa. Eu cheguei à conclusão que eu preciso ser um pouco egoísta também, que eu preciso me afastar de você pra minha vida voltar a ser legal.
-          De repente, depois de 15 anos, eu virei um egoísta desalmado.
Ela riu. Um riso de ironia:
-          Durante muito tempo nós vivemos coisas muito boas, momentos muito felizes. Difíceis também, é verdade. Mas, de repente, já faz um tempo, o ruim passou a superar o bom, são mais momentos difíceis do que alegres. E eu não quero mais isso.
-          Os meus argumentos terminaram – eu disse, fechando a torneira. Voltei a olhá-la, agora ajeitando a mecha de cabelo, brincando com a xícara sobre a mesa. Então, senti uma dor muito profunda no peito, como se alguma coisa estivesse faltando ali dentro de mim. Sentei de frente para ela e toquei sua mão. Ela não revidou como eu poderia supor. Antes, apertou meus dedos com carinho.
-          Como eu vou viver sem você? – Perguntei.
Ela sorriu com muita sinceridade, como da primeira vez que disse que me amava:
-          O tempo, meu amor, há de dar conta disso. Não tenha medo.
Ela tinha razão, eu sabia. Então, abaixei a cabeça sobre a mesa e chorei. As mãos dela  ainda apertando os meus dedos.