“Quero chorar porque me dá gana,
como choram os meninos do banco mais atrás,
porque não sou um homem, nem um poeta, nem uma folha,
mas um pulso ferido que ronda as coisas do outro lado.”
(Poema
Duplo do Lago de Éden) Federico Garcia Lorca
Tudo começou
quando ela quis jogar fora as minhas camisetas velhas. Eram velhas, eu
sei. Largas, gastas, algumas sem colarinho, outras com nódoas marrons na
superfície branca, mas eram minhas companheiras nas caminhadas, nas manhãs de
sábado no quintal e nas tardes de domingo em frente à TV. Naquele
dia percebi que havia algo estranho. Depois de brigarmos efusivamente sobre de
quem era a guarda das camisetas velhas e, extasiados, darmos às costas um ao
outro, indo eu parar no escritório enquanto ela separava infinitamente as
roupas na lavanderia, eu enxerguei que havia algo errado.
“São a suas
camisetas, as suas músicas, os seus livros”, ela havia dito, querendo dizer bem
mais que isso. “É só um pouco de espaço para minhas coisas que eu peço”,
respondi, irritado. Puxei uma camiseta com a efígie do Che Guevara das suas
mãos e me arrependi do que falei. Mas tive orgulho e saí dali, indo me refugiar
na escrivaninha, fingindo que lia não sei o quê.
O silêncio
que se seguiu durou quase uma semana e não terminou como de costume – quando
costumávamos nos reconciliar nas dobras do lençol, esfuziantes entre o gozo e
os pedidos de desculpas. Quando voltamos a nos falar, foi como se nada tivesse
acontecido, nem um “desculpe”, ou “vamos conversar a respeito”. Foi só um
vazio, um intervalo indigesto de sete dias entre a última frase e um “bom dia”
no café da manhã. Nesse dia, ela estava mais alegre. Não sei porquê e confesso
que isso me intrigou. Antes, quando as coisas eram como antigamente, ela sempre
me contava do seu dia no trabalho, das novidades e das fofocas dos colegas que
eu nem conhecia. Se agora estava alegre é porque algo de bom havia lhe
acontecido. Mas eu já não era tão confiável a ponto dela me contar. Senti-me traído
e ao mesmo tempo com raiva. Deixei
passar.
Dias depois,
brigamos por causa da marca do sabão em pó e, no seguinte, por culpa da demora
na fila do caixa do banco. Noutro dia, o motivo foi uma frase irônica (ela jura
que percebeu ironia) que eu disse no jantar na casa de uns amigos.
No fim, o motivo já não importava. As discussões eram cada vez mais frequentes e longas, mais danosas e mais ofensivas. Os momentos de silêncio entre nós ficaram mais comuns e até o regresso para casa, após um dia de trabalho, parecia ser um sacrifício.
No fim, o motivo já não importava. As discussões eram cada vez mais frequentes e longas, mais danosas e mais ofensivas. Os momentos de silêncio entre nós ficaram mais comuns e até o regresso para casa, após um dia de trabalho, parecia ser um sacrifício.
Quando
aconteceu, já não havia mais surpresa, ainda que fosse triste. Eu cheguei da
videolocadora, havia alugado “A doce vida” (que ironia) e ela estava sentada na
mesa da cozinha. Uma mecha de seu cabelo, preso de forma displicente por um
elástico, caía sob o rosto. Ela tinha a cabeça um pouco reclinada, como a
admirar o conteúdo da xícara de café sobre a mesa, ao lado do cinzeiro. Na mão,
um cigarro pela metade. Ela o levou até os lábios e fumou mais uma vez, antes
de olhar-me nos olhos.
-
Precisamos
conversar – disse.
Eu entendi,
mas tentei despistar, tirando uma xícara do armário e me servindo também de
café da cafeteira.
-
Quando
eu era mais jovem e namorava, essa era uma frase que sempre me assustava.
Ela me
encarou, expressão séria, como a se irritar com a minha espirituosidade:
-
Não sei
se assusta, mas é verdade.
Eu sentei,
disposto a encarar a verdade.
-
Estou
indo embora.
Eu sabia que
era essa a frase que ela diria, mas mesmo assim doeu. Como uma dor física, uma
fisgada no peito:
-
Essa é
a solução? Quer dizer, é isso mesmo que nós devemos fazer?
-
Eu não
sei se é o que nós devemos fazer – ela retrucou – mas é o que eu devo fazer. O
que eu preciso.
-
E nós
não vamos discutir isso? Não há argumento? Já é decisão tomada? – fiquei
perguntando.
-
Nós
temos discutido nos últimos três meses. Eu não quero mais discutir.
-
Não,
nós não discutimos – eu insisti - Não sobre nós. Nós discutimos sobre o sabão
em pó, sobre a TV, sobre a assinatura do jornal, mas não sobre nós.
Ela sorriu.
Um riso discreto:
-
E já
não basta? Não há mais nada sobre o que tenhamos que discutir.
Eu silenciei
por um momento.
-
E você
vai embora?
-
Vou.
-
Mas eu
te amo.
-
E eu
também te amo.
-
Então,
o que nos falta?
Ela apagou o
cigarro:
-
Não
sei. Mas se o nosso amor é esse martírio, eu não o quero mais.
-
Como
assim? Como assim? Há quanto tempo
nós estamos juntos? Vai ser tudo jogado fora?
-
Quinze
anos. Esse é o tempo que eu te amo.
-
E isso
não basta para nós ficarmos juntos?
Ela segurou
minha mão:
-
É
porque eu te amo que estou indo embora. É porque eu te amo que eu não quero
mais sofrer, nem te fazer sofrer. Não vale a pena.
-
Não
vale a pena ao menos tentar?
-
E o que
você acha que eu tenho feito há não sei mas nem quanto
tempo ? Você acha que eu não tenho tentado te entender,
entender o que se passa entre nós?
-
Eu não
acho. Na verdade eu penso que nós ainda não tentamos.
-
Você é
mesmo um egoísta – ela disse, virando o rosto para o outro lado.
-
Egoísta?
Essa é a sua conclusão? Não é por nós – nós
– que eu quero tentar?
-
Não,
não é. É por você. Você que ainda não enxergou que a nossa vida não é mais a
mesma. – Ela me encarou por um instante, antes de prosseguir – Não há mais
alegria nessa relação.
-
Alegria?
Como assim? Eu não te faço mais rir? O que você quer que eu faça? Que eu aja
sempre com humor diante das coisas que acontecem?
-
Eu não
preciso da sua ironia. Desse momento em diante, eu não quero mais nada de você.
Aliás, já faz algum tempo que eu não quero nem espero mais nada.
Eu me levantei. Abri a torneira e fiz de conta que pegava um pouco de
água, mas na verdade não sabia o que fazer. Larguei o copo, deixei a torneira
aberta, virei novamente para ela:
-
Eu te
amo. Há 15 anos que eu te amo. Não é o bastante pra você querer viver comigo?
Ela baixou a cabeça. Pareceu que estava chorando. Levantou-a novamente:
-
Não
adianta mais nada. Essa cena é inútil. Não se trata de 15 anos ou de um dia, você
não entende? O que era bacana nessa relação, o que parecia ser a razão
dela, acabou. É porque eu sei que você
me ama e porque eu também te amo que estou indo embora.
-
Eu não
entendo.
-
Não
importa. Eu cheguei à conclusão que eu preciso ser um pouco egoísta também, que
eu preciso me afastar de você pra minha vida voltar a ser legal.
-
De
repente, depois de 15 anos, eu virei um egoísta desalmado.
Ela riu. Um riso de ironia:
-
Durante
muito tempo nós vivemos coisas muito
boas, momentos muito felizes. Difíceis também, é verdade. Mas, de repente, já
faz um tempo, o ruim passou a superar o bom, são mais momentos difíceis do que
alegres. E eu não quero mais isso.
-
Os meus
argumentos terminaram – eu disse, fechando a torneira. Voltei a olhá-la, agora
ajeitando a mecha de cabelo, brincando com a xícara sobre a mesa. Então, senti
uma dor muito profunda no peito, como se alguma coisa estivesse faltando ali
dentro de mim. Sentei de frente para ela e toquei sua mão. Ela não revidou como
eu poderia supor. Antes, apertou meus dedos com carinho.
-
Como eu
vou viver sem você? – Perguntei.
Ela sorriu com muita sinceridade, como da primeira vez que disse que me
amava:
-
O
tempo, meu amor, há de dar conta disso. Não tenha medo.
Ela tinha razão, eu sabia. Então, abaixei a cabeça sobre a mesa e
chorei. As mãos dela ainda apertando os
meus dedos.
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