terça-feira, 15 de julho de 2014

Essa dor que nos consome

Teotônio sentia uma tristeza imensa. Era uma tristeza que não tinha lá uma razão de ser. As coisas até que andavam direito na sua vida. Sua filha, Maria, tinha se encantado pela dança, que frequentava duas tardes por semana, no contra turno da escola. A esposa, Gisele, estava radiante com a gravidez de Josué, já pelo sexto mês de espera. No trabalho, apesar das dificuldades inerentes à profissão, tudo seguia em perfeita ordem. Por isso, Teotônio não entendia essa tristeza que sentia.

Era como uma angústia, um nó que lhe subia o estômago e não lhe dava sossego. Por vezes, pegava-se divagando, observando uma formiga que brigava com uma migalha no chão do quintal ou com uma folha da frondosa mangueira que enfeitava seu jardim. Noutro dia, enquanto assistia ao noticiário noturno na TV, sentiu um desejo imenso de chorar ao ver a história de uma família que percorria três quilômetros diários para conseguir água para suprir suas necessidades diárias. Mais que depressa, disfarçou um cisco no olho e correu para o banheiro, onde o nó tinha deixado o estômago e se alojado na garganta. Pigarreou, cuspiu, lavou o rosto e voltou pra sala de casa dizendo que se avizinhava um resfriado.

De certa feita, enquanto dirigia a caminho do trabalho, a filha no banco de trás, fazendo mil perguntas sobre o novo irmão e se ela teria que dividir o quarto, como é que ia ser para o pai lhe levar pra escola quando o menino nascesse e coisas desse tipo, sentiu-se tão triste que não conseguiu evitar um soluço de choro. Guardou a dor o mais forte que pôde e apressou-se em tranquilizar Maria, de que fora um mal passageiro, coisa de gente velha.

E aí Teotônio entendeu que tinha um tumor. De forma dissimulada, sem o conhecimento da família ou dos amigos, agendou um médico, fez exames e preparou-se para o diagnóstico. Depois de um mês, o veredito: estava na mais perfeita saúde. Não era físico o mal que sentia, garantiu o especialista. Talvez fosse o estresse, a expectativa da nova paternidade, as mudanças de rotina que viriam. Mas, Teotônio não acreditou. E ficou ainda mais triste. Se ao menos a morte fosse iminente, talvez a tristeza tivesse razão de ser, como um aviso do universo de que a despedida chegava. E continuar vivendo nessa rotina lhe enchia de angústia. Tornava-se cada vez maior essa tristeza, essa vontade de isolar-se do mundo, de não dar importância ao trabalho, família, futebol ou qualquer forma de lazer.

Foi quando Teotônio resolveu ir embora. Homem metódico que era, organizou as contas, escreveu cartas para a filha e o filho que vinha chegando, uma imensa missiva para a esposa com ordens expressas de como investir ou sacar os recursos que tinham no banco, atualizou dados, limpou as gavetas do escritório, assinou todos os documentos necessários e se preparou para partir.

Era sexta-feira, preparou-se para ir trabalhar como todos os dias. Despediu-se da esposa, roçou as costas da mão, levemente, sobre a barriga gigante, alojou a filha no banco traseiro e partiu. Sem qualquer lampejo de hesitação. Largou a filha na escola, desceu a esquina e virou à esquerda, rumo à rodovia, para um destino que não sabia qual era. Minutos depois, o telefone tocou. Deixou que chamasse diversas vezes, mas não se conteve e atendeu. Era Gisele. Alguma coisa estava errada, sentia dores, chorava, estava indo para o hospital. Teotônio parou no acostamento. Desceu a cabeça sobre o volante e chorou. Chorou profundamente, como uma criança que sente que só o choro alivia, clama socorro, desperta interesse. Mas ninguém o socorreu. Ninguém sequer o viu.

Teotônio conhecia seu destino. Deu meia volta, dirigiu desesperadamente até chegar ao pronto-socorro. A esposa estava sendo atendida, ninguém lhe dava muitas explicações, talvez um parto prematuro, talvez um aborto natural. As horas passaram, foi buscar a filha, deixou na avó, voltou para o hospital. Estava em cirurgia. Sim, o filho ia nascer. Paramentou-se, entrou na sala a tempo de ouvir um choro. Olhou Gisele, que sorria. Aquele sorriso de mãe que se sente recompensada por trazer vida ao mundo. Um médico sussurrou que estava tudo bem. Fora um susto, mas estava tudo bem.

Uma enfermeira lhe estendeu uma pequena trouxa de pano, no meio dela, Josué. Teotônio pegou o pequeno com as duas mãos, trouxe próximo aos olhos. Sorriu. Sorriu para o menino que não conhecia, mas, por dentro, a tristeza o consumia ainda mais. Não havia remédio. O jeito era viver.