quinta-feira, 31 de maio de 2012

Todas as vidas. Ou nenhuma vida.


Tínhamos 40.  Até então eu não sabia, mas ela tinha a mesma idade que eu, quando a vi sentada na mesa do Café. Estava atenta, lendo não sei o quê. Passei por ela distraído e foi quando aconteceu o grande clichê de nossas vidas: minha xícara escorregou e o café se esparramou sobre a mesa. Foram minutos de desespero enquanto tentávamos desculpar-nos mutuamente. Eu a dizer “desculpe”, ela se esforçando em ser simpática, como se não fosse nada demais. Depois de tudo limpo, houve um desconforto mútuo, um silêncio constrangedor que apanhou nosso pensamento e nos uniu num sorriso. Que sorriso! O mundo se abriu naquele instante e decidi que nunca mais queria vê-la de outra forma. Nem que todos os sacrifícios fossem necessários, de alguma forma, eu precisava fazê-la sustentar o riso eternamente, pois se tratava de uma emoção que eu nunca antes presenciei.

Não vou contar minha história antes dos 40 anos, porque não tenho história antes de conhecer Lúcia. A partir daquele dia, éramos um par e isso bastava. Discutimos filosofia, assistimos jogos de golfe na tevê (um enfado para mim, mas que ela adorava), escrevemos poesia em guardanapos de botequim, vimos muitos filmes e muitas pessoas nos viram. Todos os dias, sempre juntos.

Não nos casamos. Não sei porque, nem tenho pretensão de saber. Apenas convivemos assim, como se fôssemos um jovem casal de namorados nos filmes da matinê. Nossa vida era um sonho tranquilo, invejável e previsível.

Quando completamos 60, olhamos para trás pela primeira vez. Houve um lampejo de tristeza nos olhos dela, uma sombra escura que se dissipou em algumas horas. É que lembramos que esquecemos de ter um filho. Naquelas horas em que raciocinamos a respeito e a mágoa do tempo perdido apareceu, rezamos juntos para que o remorso nunca nos ameaçasse. Decidimos esquecer.

Nos outros 20 anos, viajamos muito. Lúcia estava extremamente curiosa. Ela queria saber a origem das coisas, dos povos, das histórias que os livros contavam. Fizemo-nos de bandeirantes e escavamos muitas partes do mapa atrás das respostas que sabíamos não existir. Já não tínhamos as mesmas pernas e braços, embora não tivéssemos consciência disso e, muitas vezes, cansamos em demasia. Arriados nos prados ou em qualquer lugar onde pudéssemos parar, ficávamos observando o céu e brincando de identificar as nuvens.

Este era o seu passatempo favorito! Deitava-se em algum lugar aberto, barriga para cima, fechava os olhos e me pedia para descrever o céu. Eu lhe contava histórias que inventava na hora, sobre príncipes que buscavam água para suas amadas na fonte das nuvens, ou sobre pássaros que construíram um ninho lá em cima e nunca mais voltaram para rever os seus. Então, ela ria. Um riso solto, divertido e infantil. E eu, era o homem mais feliz do mundo.

Um dia, ela fechou os olhos numa tarde dessas e nunca mais abriu.

Eu tinha 80 anos nesse dia. Não sei quantos tenho agora. Não me interessa saber. Olhei no espelho esta manhã e não me enxerguei na imagem que vi. Eu vi um velho e Lúcia nunca amou um velho. Eu vi um homem triste e Lúcia nunca me deixou triste. Eu vi um velho triste e sem imaginação. Se fosse assim, como eu poderia criar as histórias que a faziam tão feliz? Espero um dia encontrá-la novamente. Talvez nas nuvens, esperando um copo d’água, ou construindo o nosso ninho, ou apenas sorrindo e me fazendo sentir novamente um homem com vontade de viver.

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