quarta-feira, 18 de maio de 2016

Amiúde

Caro João,

Não há mais tempo para ver as fotos amareladas. Será que ainda vivem lá aqueles seres sorridentes? Será que ainda perduram a cabeleira, o aparelho nos dentes, as mãos sem manchas? Ou será que se mudaram, que o cachorro não está mais molhado, que não há mais enquadramento? Ou lá é um mundo congelado no tempo?

Tenho medo de vasculhar aquelas gavetas. Tenho receio de rever lembranças que finjo que escondo, de encontrar pessoas que a vida me levou, de encarar sentimentos que só pra ti eu conto.

Lembra dos sorrisos, João? Eram largos, profundos, sinceros, como se quase tudo fosse de brincadeira e despertasse a gargalhada. Lembra das aventuras, dos porres, das ressacas...

Parece que não existiam lágrimas naquele tempo. Eu provo (se remexer nas gavetas). E talvez não existissem mesmo. Pelo menos, não estão registradas em instantâneos. Talvez elas tenham nascido depois, quando deixamos de fotografar a vida em papel.

Que intervalo foi esse entre o registro da alegria e a porrada do tempo?

Hoje, parece que ficamos monocromáticos. Já reparou que até nossas roupas ganharam tons pastéis com os anos? O registro de cor até existe, aqui e ali, mas é apenas uma nota dissonante no uniforme cinza e azul que usamos costumeiramente.

Ando a reclamar muito do tempo, não é? Ele não tem culpa, é só o agente desse amarelamento da vida.

Porque lá, naquele mundo impresso em papel fotográfico, as cores são bem vivas. Lá, eu ainda acreditava, não sei no quê, e não importa. Lá, a poesia ainda me consumia.

Divago, eu sei, João, porque essa missiva é catártica. E me assalta a ideia de rever essas fotografias. Mas tenho medo de remexer nas gavetas. 

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