quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A ira de Deus

Compassava as largas ancas num bailado esquerda-direita ao longo da rua. Nesse trejeito, seu quadril esbarrava na bolsa de corvídeo marrom, que carregava à tiracolo, no ombro direito. O colo nu não escondia as pequenas sardas que acentuavam ainda mais a alvura de sua pele, realçada pelo verde da minúscula blusa. Vestia uma calça marrom bem justa e sapatos de couro preto, do tipo bom e barato. O rosto estava carregado com uma massa informe de cremes e cores indescritível: talvez algo mais rosado nas bochechas e mais para o musgo em torno dos olhos. Não fosse a vulgaridade de sua maquiagem e roupas, poderia até se dizer que era  bonita.

Na verdade, nasceu bonita. Como se estivesse predestinada, marcada pela sorte a viver e morrer por causa de seu rosto. A mãe horrorizara-se ao vê-la nos braços da enfermeira, em seu primeiro dia de vida: que tipo de Deus lhe dera uma criatura tão perfeita para criar? Em seguida, suspirou profundamente e desistiu: fechou os olhos para sempre.

Não havia razão para que nascesse tão bela, seus progenitores não tinham nada de especial. Eram pessoas comuns, de rostos comuns e até bem castigados pela vida. Ah, mas tinham uma fé sem tamanho! As suas crenças nas coisas divinas e nos caminhos imperfeitos que o Senhor professa era algo de que tinham orgulho e servidão total. Sem a mãe, o pai resolveu que ela também seria criada assim e, desde cedo, quando trocou suas primeiras palavras, recebeu nas mãos um exemplar da bíblia como presente paternal.

Este livro deveria guardar por toda existência, como a pedra angular que regeria seu destino. Mais tarde, quando chegou sua vez de ir para a escola, a primeira providência foi esconder-lhe a beleza o máximo possível: desgrenhou os cabelos, empalideceu as faces  com um “pó de arroz” envelhecido que sobrara entre as coisas da esposa morta, e a vestiu com as roupas mais simples. Afinal, imaginava ele, o que não haveriam de pensar as outras pessoas quando vissem o tesouro com o qual ele fora presenteado? Mesmo assim, quem a observasse com cuidado, não poderia deixar de perceber aqueles olhinhos azuis cintilantes, faiscando num rosto perfeito. Com o tempo, o artifício de esconder-lhe os traços naturais passou a ser uma regra e um ato feito com tanta simplicidade como tomar café pela manhã, ou rezar a oração de graças, antes do almoço. Era uma rotina que ela mesma aprendeu a realizar sozinha: as roupas simples, o rosto levemente maquiado, o cabelo despenteado e meio sujo, além das atitudes servis. Sim, porque lhe foi imposta uma postura teatral para agir perante os outros: Jamais levantar os olhos para quem lhe interpelasse. Jamais andar devagar ou com passos coreografados. Jamais sorrir, sob hipótese alguma.

E a menina, como só conhecesse esta forma de vida, nunca questionou, nunca ousou perguntar por quê? Somente obedecia. Esta foi sua rotina até seus quinze anos. Nunca vestira uma saia, nunca tivera os cabelos penteados, nunca soube o sabor ou o prazer de sorrir. Na verdade, nunca soube que cor tinha ao certo o céu, pois jamais elevara os olhos além da altura de seus próprios joelhos.

Isso, até conhecer um espelho.

Alojou-se na esquina que era seu abrigo todas as noites, protegida pela sombra da marquise da loja de confecções. “MAGAZINE LUANA: ROUPAS ELEGANTES PARA MULHERES DE CLASSE”, dizia o letreiro em neon que insistia em piscar. Magazine... Luana... roupas..., ela observava a ordem crescente com que o luminoso se repetia hora após hora. Ajeitou a perna direita sobre a calçada e a mesma mão sobre a coxa, numa posição que considerava ao mesmo tempo desafiadora e sexy. Os olhos seguiam o passar frequente dos carros, distinguindo, entre eles, seus possíveis clientes. Homens velhos, homens gordos, homens sujos, todos os homens. Passageiros comuns daquela rua, conhecido ponto de partida para as aventuras noturnas. Logo percebeu que esta não seria uma noite muito lucrativa. Uma brisa fina pousou nos seus ombros e ela amaldiçoou a escolha da roupa que usava. Levou a mão ao pescoço tentando aquecê-lo com seus dedos. Deslizou até as pérolas falsas do colar, desfiando-as com as unhas.

“Sagrado coração de Jesus... tende compaixão de nós! Sagrado coração de Jesus... eu tenho confiança em vós!” A prece tantas vezes repetida. O burburinho baixo das vozes se encontrando, repetindo, aclamando. Entre os dedos entumescidos pela repetição, o rosário de missangas negras, passadas pedra por pedra, com a oração fervorosa e repetida: “Sagrado coração de Jesus... Maria, nossa mãe... Sangue de Jesus...” Um sino que repica, um cálice que sobe, vestes cor de púrpura... e ouro. Muito ouro. A igreja, as beatas, os salmos cantados em coro, o terço entre os dedos, a fila de pessoas para comer o pão, o corpo... No meio deles, a menina. Perdida e angustiada, se sente sozinha. Segue até o altar, ergue os olhos e vê o padre. Vê também o hostensório. No seu brilho, o reflexo de seus olhos. Como no espelho. O decano lhe oferece a hóstia. Ela vai pegá-la e treme: o pedaço de pão cai no chão. Medo. Muito medo. Uma voz grita. Alguém reclama. “Estúpida! Burra! Sacrílega!” Lágrimas deslizam pela face. “Não tive culpa!”.

Um carro se aproxima. Um homem magro, aparentemente alto. Um fino bigode enfeita seu rosto e dança quando ele abre a boca: “Olá!”. Ela responde debruçando-se na janela, os seios quase à mostra. Observa o interior do automóvel: o revestimento em couro (coisa fina!), painel digital, algumas revistas jogadas no banco de trás. Negociam por alguns minutos: preço, trabalho e local. Tudo acertado, ela entra, e o veículo segue.  As ruas se tornam estreitas e escuras, cada vez mais frias. Eles param em frente ao Hotel Sossego - na verdade, uma porta estreita e um corredor com quatro quartos, que alguém pretensiosamente resolveu chamar assim. Descem do carro e entram. Ela então percebe o quanto seu parceiro é alto, no mínimo com uns dois metros. No quarto, uma cama e um criado-mudo. Ela segue até o banheiro. Nele, um vaso e um bidê. Tira a bolsa, os sapatos, a calça, a blusa e a calcinha. Volta para o outro cômodo, ciente da beleza de seu corpo: o homem a observa com um olhar de ansiedade, sua boca retorcendo-se em palavras que ela não ouve, e o bigode fino deslizando como dois grafites animados naquele rosto simpático. “O primeiro freguês de uma noite insone”.

Alto. Alto e forte. Mãos grandes e pesadas. Dedos enormes! A força daquela mão pesada queimando a sua pele. Rosto, braços, pernas, nádegas, peito. Tudo em brasa pelos golpes daquele homem alto, que batia sem enxergar onde tocava. Apenas insistia no desejo de castigar seu corpo, enquanto esbravejava: “Meretriz! Vadia sem-vergonha! Quem te ensinou essas coisas? Me diga! Quem te mostrou essas coisas?”. “Que coisas?”, seu pensamento se angustiava. Não sabia do que seu pai falava. Tudo de que lembrava era que encontrara um espelho no fundo do baú com as roupas de sua mãe morta. Pusera-se a observar seu rosto. Admirou-se com os traços daquele reflexo que a mirava. Era como se aquela mulher que a via no espelho lhe dissesse o quanto era bela. Começou a ajeitar o cabelo, chegou mesmo a limpar o rosto com um pano úmido para conhecer melhor a sua expressão verdadeira. Depois despiu-se e seguiu com os olhos o espelho que desfilava pelas suas curvas. Foi quando ele chegou. Os olhos saltados de espanto. Não adiantou palavra. Pôs-se a esbravejar e a bater com uma raiva demoníaca e ela só fazia chorar. Chorar e pensar o que havia feito de errado, qual seu pecado em ver-se naquele espelho?

Abotoou a calça com esforço, pois era muito justa. Demorou-se ainda uns segundos defronte o espelho, antes de virar-se para o homem: “Você me deixa lá?”. “Não”, ele fez com a cabeça. Que remédio? O jeito era caminhar. Saiu do quarto sem se preocupar em fechar a porta atrás de si e continuou até encontrar a névoa da rua. Conhecia muito bem aquele caminho, já o fizera muitas e muitas vezes nesses anos em que vivia do prazer alheio. Andava pela calçada, desta vez sem se preocupar com o rebolado ou a aparência. Ali só haviam putas, bandidos e pobres, ou seja, sua gente, e a eles ela não precisava temer, se esconder ou disfarçar. Começou a cantarolar uma canção de amor. Gostava de fazer isso quando deixava seus clientes satisfeitos. Era como um prêmio ou uma recompensa. Na verdade, esta noite estava especialmente inspirada. Talvez fosse a cerração, o frio e a escuridão. Elementos dos quais gostava e que a faziam sentir-se independente. Aumentou o volume de sua voz. Queria ouvi-la, queria poder criticar sua própria incapacidade de reproduzir uma música tão popular sem desafinar. Riu por um momento. Acabou o trajeto das ruas, e quando aproximava-se da esquina já via de longe seu companheiro luminoso a repetir a frase sobre as mulheres elegantes e de classe. Riu mais uma vez. Tropeçou numa pedra e soltou um palavrão. Parou para apreciar seus sapatos novos de couro. Quando levantou novamente o rosto foi que o viu e reconheceu. Não ele. Não seria capaz de tanto; mas o livro de couro preto que tinha embaixo do braço.

Ela via os maços de seus cabelos caírem no chão. Os fiapos que sobravam, grudavam em seu rosto, pegajoso com as lágrimas que escorriam. Quando ele terminou, juntou-os e jogou no forno do fogão. Ela os viu queimarem-se, a pele ainda ardendo, aquelas mãos ainda segurando o seu braço, as lágrimas ainda caindo. Em seguida, ele pegou a bíblia e a leu. Lia como se estivesse rasgando suas têmporas com os berros. Gritava trechos sobre a danação e o inferno. Gritava sobre a fé e a desgraça dos gentios. Às vezes, esfregava as folhas amarelecidas do livro em seu rosto, como se ela não fosse capaz de ouvir sem também enxergar o que era dito. Isso durou horas. Talvez dias, era difícil ter certeza. Depois, ela só lembra do escuro. De um quarto pequeno, uma cama, uma vela sempre acesa e o livro de couro em que estava escrito tudo. Tudo, sobre tudo. Precisou lê-lo repetidas vezes, para si e para o pai. Ele a proibiu de ir à escola e sua única saída era aos sábados, quando frequentava a catequese na capela do bairro. Voltou a ser subserviente como sempre foi ensinada, mas sua cabeça já não conseguia mais entender o que fora feito de seu destino. Parecia confuso. O certo e o errado haviam encontrado uma tênue linha em seu espírito, e brigavam pela posse de seus sentimentos. Até no dia em que o corpo de Cristo lhe caiu das mãos.

Era ele. Era sim. Parecia que o tempo não havia passado, pois a imagem que fazia dele não envelhecera em nada. Olhou para suas mãos compridas. As mesmas mãos. Quis passar direto, mas deteve-se, como se um imã a tivesse puxado e prendido. Sentiu que tremia e um frio intenso passou por sua espinha. Estava a ponto de chorar, mas não chorou. Ao contrário, ergueu o rosto e olhou seus olhos. Como estavam velhos! Incrível como os anos não lhe desfiguraram o corpo, mas apenas os olhos. Estavam brancos, frios e tristes. Ele olhou para a bíblia e lentamente esticou a mão, oferecendo-lhe. Ela olhou para o livro detidamente. Conhecia cada palavra, cada virgula, cada ponto e cada espaço vazio. Ele agora a pesquisava com os olhos: cada peça de roupa, a sua pele, os cabelos, os olhos, a cor de sua maquiagem. Chorou silenciosamente e sem se mover. Ela quis secar-lhe as lágrimas com os beijos. Não o fez. Ele continuava com a mão estendida. Ela pôs sobre o peso do livro a sua própria mão, e então, falou: “Fique com ele. É o seu presente de Deus”, e finalmente conseguiu passar adiante, seguindo pela noite adentro.   

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